É natural que para o cristão convicto não seja
relevante se a história do nascimento de Jesus tem ou não fundamentação
verídica. Mas não é menos natural que o historiador se interrogue sobre a
veracidade dos factos apresentados na Bíblia.
Quem leu o
famoso romance “Reviver o Passado em Brideshead”, de Evelyn Waugh, lembrar-se-á
de uma conversa entre Charles e Sebastian sobre a fé em que Charles se afirma
não-crente e exprime a sua estranheza perante o facto de o amigo acreditar na
lenda do Natal (com Reis Magos e burrinho junto da manjedoura). Diz Charles:
“Mas, meu caro Sebastian, não podes acreditar naquilo a sério.” Ao que
Sebastian responde: “Claro que acredito: a ideia é lindíssima.”
A ideia é,
convenhamos, de uma beleza intemporal. Por isso, todos os anos, adultos e
crianças no mundo inteiro se encantam com a beleza do presépio e com a história
(ainda atual em 2015) de uma família de refugiados que, algures no Médio
Oriente, obteve guarida no estábulo de uma estalagem onde nem sequer havia
lugar para uma jovem no termo da sua gravidez.
No entanto,
tal como tudo o que nos é transmitido através de narrações que encontramos na
Bíblia, levanta-se a pergunta incómoda da factualidade histórica. Se, por um
lado, é natural que para o cristão convicto não seja de decisiva relevância se
a história do nascimento de Jesus tem ou não fundamentação verídica, não é
menos natural, por outro lado, que o historiador da Antiguidade se interrogue
sobre a veracidade dos factos apresentados na Bíblia.
E esta
interrogação não é ilegítima enquanto método de leitura das passagens bíblicas
referentes ao nascimento de Jesus, pela simples razão de que, a respeito deste
acontecimento, os dois autores que sobre ele se debruçam seguem uma abordagem
historicamente consciente.
Esses autores são Mateus e Lucas, os dois evangelistas que incluem nos seus Evangelhos a história do nascimento de Jesus. Ora Mateus e Lucas situam este acontecimento recorrendo a dados históricos suscetíveis de serem verificados em fontes antigas exteriores ao Novo Testamento. Situação que, contudo, arrasta no seu encalço uma série de problemas, já que Mateus e Lucas nos apresentam narrativas sobre o nascimento de Jesus que se contradizem mutuamente.
Esses autores são Mateus e Lucas, os dois evangelistas que incluem nos seus Evangelhos a história do nascimento de Jesus. Ora Mateus e Lucas situam este acontecimento recorrendo a dados históricos suscetíveis de serem verificados em fontes antigas exteriores ao Novo Testamento. Situação que, contudo, arrasta no seu encalço uma série de problemas, já que Mateus e Lucas nos apresentam narrativas sobre o nascimento de Jesus que se contradizem mutuamente.
MATEUS, LUCAS E JOÃO
A história,
tal como é contada por Mateus, tem características que não aparecem em Lucas:
só em Mateus é que encontramos os Magos, a Estrela de Belém, o Massacre dos
Inocentes e a Fuga para o Egito. Em Mateus, fica subentendido que José e Maria
são naturais de Belém; só depois do regresso do Egito é que se mudam para
Nazaré. Lucas vê a situação ao contrário: José e Maria são naturais de Nazaré,
mas têm de se deslocar a Belém para a formalidade de um recenseamento romano
(cujos contornos, tal como são narrados por Lucas, colidem consabidamente com a
realidade histórica). Dado que, em Mateus, tudo leva a crer que Jesus nasceu,
sem percalço de maior, na morada belenense de Maria e de José, neste Evangelho
não há manjedoura nem adoração dos pastores. O evangelista do presépio é Lucas.
Lucas e
Mateus estão de acordo num facto atinente à cronologia histórica: ambos situam
a ocorrência da gravidez milagrosa de Maria no reinado de Herodes, “o Grande”,
monarca que morreu em 4 a.C.: Jesus nasceu, portanto, antes do início da era
cristã. Será assim? É que Lucas confunde-nos ao dizer (no capítulo seguinte ao
da narração da gravidez de Maria) que Jesus nasceu durante a governação do
romano Quirino, a qual começou dez anos após a morte de Herodes. Como é que
isto pode ser? O carácter milagroso da gravidez de Maria não justificaria,
decerto, que durasse dez anos em vez de nove meses.
Temos,
portanto, em Lucas, dois dados históricos mutuamente incompatíveis: a gravidez
de Maria ainda no tempo de Herodes, “o Grande”, e o nascimento de Jesus, dez
anos após a morte desse soberano. Mateus, por seu lado, situa tanto a gravidez
de Maria como o nascimento de Jesus no reinado de Herodes, dando-nos uma data
precisa para o regresso de José, Maria e Jesus do Egito: o ano da morte de
Herodes (4 a.C.).
... e “Fuga
para o Egito” fazem parte do conjunto de frescos “Vida e Paixão
de Cristo”, de
Giotto Di Bondone (1267-1337), presentes na Capela Scrovegni, Pádua, Veneto,
Itália
Mesmo
sabendo que o regresso da Sagrada Família do Egito ocorreu em 4 a.C., ficamos na
dúvida sobre o ano em que Jesus nasceu. Que idade tinha o Menino quando voltou
do Egito e se estabeleceu com os pais na cidade de Nazaré? Era um bebé? Era um
rapazinho que já sabia andar e falar?
Não sendo
possível recorrer a outros dados, abordemos a questão sob um prisma diferente.
Em que ano ocorreu a crucificação de Jesus? Que idade tinha quando foi pregado
na cruz? Segundo Lucas (3:23), Jesus tinha 30 anos quando começou o seu
ministério; o mesmo Lucas (3:1) diz-nos que isso aconteceu no 15º ano do reinado
de Tibério (portanto no ano 29 da nossa era).
Mas esta
data, aparentemente tão precisa, não está isenta de problemas de plausibilidade
histórica: segundo os próprios Evangelhos, o ministério de Jesus começou no ano
em que João Baptista foi preso (veja-se desde logo o Capítulo 4 de Mateus).
Todavia, os dados históricos exteriores ao Novo Testamento (tão bem trabalhados
e reunidos pelo historiador Nikos Kokkinos) levam-nos a apontar como data para
o aprisionamento do Baptista o ano de 34. Isto significa que compatibilizar a
vida do Jesus real com dados históricos reais nos obriga a aceitar que o
ministério de Jesus começou em 34 (e não em 29).
O Evangelho
de João informa-nos que se celebraram três Páscoas judaicas durante o período
de tempo em que o ministério de Jesus durou: a terceira Páscoa celebrada foi a
última da vida dele. Que idade tinha, então, Jesus quando morreu? Uma passagem
do Evangelho de João (8:57) já no século II levou leitores cristãos a pensarem
que Jesus teria mais de 40 anos quando foi crucificado (sabemos isso graças a
Santo Ireneu, “Contra as Heresias”, 2.22.5), suposição partilhada hoje por
historiadores como Kokkinos e Robin Lane Fox. Estes estudiosos apontam como
verosímil a data de 30 de março do ano 36, uma sexta-feira, para a crucificação
de Jesus.
Se, nesse
ano, Jesus já contava mais de 40 anos, teria de ter nascido, como já vimos,
numa data “antes de Cristo”: o ano 12 a.C. (em que, por sinal, apareceu o
cometa Halley) já foi apontado como plausível. No Evangelho de João (2:19-21),
Jesus afirma que seria capaz de reerguer em três dias o templo que levara 46
anos a construir: quando o evangelista comenta (2:21) que Jesus, ao referir-se
ao templo, estava na verdade a referir-se ao seu próprio corpo (“sôma”), terá
sido sua intenção informar-nos indiretamente que, no momento em que proferiu
tais palavras (no ano 34), Jesus já tinha 46 anos? O homem que morreu na cruz
em março de 36 tinha, então, 48 anos, tendo nascido por volta de 10 de outubro
de 12 a.C. (quando foi visível o cometa Halley)?
São
perguntas que têm de ficar sem resposta. A verdade é esta: de nenhum dado
irrefutável dispomos para podermos apontar quer o ano em que Jesus nasceu quer
o ano em que morreu. Há talvez só um evento da vida de Jesus para o qual
podemos definir uma data rigorosa: o regresso da Sagrada Família, após a
permanência no Egito. Sobre esse ano não há qualquer dúvida: é 4 a.C.
Mais acima
referi que, para Lucas, os nazarenos José e Maria eram pais de um Menino que
foi nascer a Belém. Em Mateus, os belenenses José e Maria vão depois
estabelecer-se em Nazaré. Afinal, de onde que é eram os pais de Jesus? Neste
ponto, não seria irracional dar mais crédito a Mateus do que a Lucas; mas
tentemos compreender as razões do evangelista do presépio. O que o leva a conduzir
os nazarenos José e Maria até Belém, para que lá nasça o Menino Jesus,
resume-se por meio de uma frase de grande alcance significativo de Mateus
(1:22): “Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora afirmado pelo
Senhor através do profeta.”
Esta frase
de Mateus toca num ponto essencial para a compreensão do texto dos Evangelhos.
Isto porque apresentar a vida de Jesus como cumprindo a cada passo profecias
que ocorrem na Escritura hebraica é a mais assumida opção não só diegética como
autoexegética dos quatro autores; opção essa que condiciona o ponto de vista a
partir do qual os quatro Evangelhos são narrados. Os eventos da vida de Jesus
são vistos pelos quatro evangelistas através desta lente transfiguradora:
quanto maior a consentaneidade da vida de Jesus com frases encontradas na
Escritura hebraica maior é a comprovação do seu estatuto como Messias.
UMA VERDADE ESSENCIAL
Este
permanente entretecer do texto dos profetas hebraicos no texto dos evangelistas
cristãos levanta dois problemas. O primeiro pode ser sintetizado na seguinte
pergunta: o que foi realmente predito e previsto pelos profetas judeus a
respeito de Jesus de Nazaré e do cristianismo? O praticante convicto da
religião judaica responderá a esta pergunta com uma única palavra: nada. E quem
aborde a Bíblia sob um prisma histórico-racional terá de lhe dar razão.
O segundo
problema é quando as alegadas profecias não se encontram, sequer, na Escritura
hebraica. Para o nascimento de Jesus em Belém, havia “fundamentação” profética
no Antigo Testamento: era em Belém que, segundo a profecia de Miqueias (5:1),
tinha de nascer aquele que “apascentaria” o povo de Israel. Mas quando Mateus
quer estabelecer os belenenses José, Maria e Jesus a viver em Nazaré, já tem
mais dificuldade. Não obstante, Mateus afirma com grande arrojo que a Sagrada
Família foi viver para Nazaré após a vinda do Egito para cumprir a “profecia”
de que ele (o Menino nascido em Belém) seria chamado de Nazareno; no entanto,
em nenhuma passagem da Escritura hebraica se encontra tal profecia. A bem
dizer, a cidade de Nazaré nunca é mencionada no Antigo Testamento.
Outra
profecia determinante (citada por Mateus e tacitamente aceite por Lucas) é
aquela segundo a qual “a virgem terá no ventre um filho e o parturirá” (Isaías,
7:14). Ora esta é, de todas as profecias citadas nos Evangelhos, aquela que
porventura terá feito correr mais tinta, pois é nela que assenta a crença
cristã na virgindade de Maria. Esta crença basear-se-á, como pensam alguns
leitores mais céticos, num mal-entendido linguístico? Todos os comentadores
modernos concordam que a palavra hebraica “almá” (utilizada no texto original
de Isaías) não significa virgem. Traduzida, porém, na versão grega do Antigo
Testamento por “parthénos” (palavra que, em grego, pode ter o sentido de
virgem), contribuiu para consolidar a crença de que a mais famosa parturiente
da cidade de Belém pôde engravidar sem que tivesse perdido a virgindade. Tal
milagre, porém, não estava “profetizado” nas palavras que Isaías escreveu 800
anos antes da gravidez de Maria: não só porque ele não se referiu a uma virgem
como também porque as palavras hebraicas de Isaías aludem simplesmente ao filho
nascituro do rei Acaz (que veio a chamar-se Ezequias).
Voltemos à
“ideia lindíssima” de que fala Sebastian no romance “Reviver o Passado em
Brideshead”. Precisamos de acreditar na manjedoura de Lucas para reconhecermos
a espantosa beleza da ideia de que o Filho de Deus nasceu num estábulo de
animais? Precisamos de acreditar na virgindade da mãe para achar “lindíssima” a
ideia de que uma virgem pudesse engravidar e parir uma criança?
O Natal tem,
no entanto, uma verdade essencial. E essa verdade é tragicamente ilustrativa da
condição humana. Se o facto de o Filho de Deus não ter vindo ao mundo num
esplendoroso palácio (mas sim na palha de um estábulo) sugere a mais requintada
das verdades poéticas, já o massacre dos inocentes ordenado por Herodes faz
soar uma nota amargamente realista, visto que genocídios e massacres pautam
desde sempre a história da Humanidade. Deus decidiu vir ao mundo? Então o mundo
é isto: é um lugar onde um bebé recém-nascido não só não tem abrigo condigno
como está na iminência de ser morto à nascença. Mais tarde, nesse mesmo Menino
já crescido, cuspir-lhe-ão em cima, troçarão dele, arrancar-lhe-ão a roupa,
fustigá-lo-ão de forma cruel, crucificá-lo-ão. Este Deus não veio ao mundo para
ser recebido como Deus, mas como um marginal, um criminoso, um “pobre de
Cristo”. Nesta mais extraordinária de todas as ideias (lindíssima, sim) é
possível — e preciso — acreditar.
*Escritor e
tradutor
Texto
publicado na edição do Expresso de 5 dezembro 2015
Fonte:
Sem comentários:
Enviar um comentário