quarta-feira, 5 de junho de 2019

CIDADE ENTRE DUAS CIDADES" DE AGUSTINA BESSA-LUÍS


"Cidade entre duas cidades" de Agustina Bessa-Luís
Senhor Presidente da Assembleia da República, Senhor Presidente da Câmara, distintas entidades oficiais, senhoras e senhores:
Estas palavras contemplam sobretudo a data de elevação a cidade, de S. João da Madeira. Cidade entre duas cidades, todo a conhecem. Vemo-la crescer, arredondar-se em praças municipais e tomar ares de senhora que se preza. Ao fazer- se cidade atingiu a maioridade. Muita gente se lembra do Cine-Teatro Avenida, ao desfazer da curva, uma dessas casas de espectáculos que são uma forma de heráldica nos lugares onde o trabalho se distinguiu. Raramente descortinei as portas abertas e a entrada e saída dos espectadores. Era, para mim, um palco simbólico, possivelmente com uma tela imaginária onde não se descortinam cenários nem aparecem actores. No entanto, é aí que eu situo a cidade de S. João da Madeira, para mais fácil encontro com ela, no seu todo.
Abrem-se as cortinas de veludo e toca uma trompete desgarrada. O som lento e fantástico introduz-nos na era do chapéu, que não é, como se pensa, uma era remota. O chapéu (não falamos do elmo nem da coroa imperial) acompanha o movimento da civilização; é uma maneira de exprimir sensibilidade, de animar o cumprimento entre vizinhos e estranhos, de fixar uma linguagem . Quando em S. João da Madeira se instalam as primeiras fábricas de chapéus é quando o cidadão começa a tomar ascendente como indivíduo de relações: o chapéu é um instrumento diplomático, . como a capa foi um atributo de poder. Nos séculos XV e XVI, exactamente o Tentador , que é da intimidade do Dr. Fausto , de Goethe, apresenta-se com chapéu e capa. Quer dizer: preparado para seduzir e para mandar. Uma cidade que se tornou tão eminente na sua indústria a partir do fabrico do chapéu , é uma cidade que tem qualquer coisa de enigmático. O chapéu que mais relevo tem na nossa História é o do Infante D. Henrique, um modelo que, ao que parece, era de origem nórdica. Quer seja o retrato do Infante, ou não, o pintado no painel de Nuno Gonçalves, a verdade é que esse chapéu se tornou um símbolo. O véu que tomba da aba larga tem que ver com os véus das tanagras. Parece um chapéu de mulher e é muitíssimo pretensioso, elegante e impróprio dum homem de ciência. Mas condiz com um príncipe de quem se dizia que era esmerado no trajar. Talvez mesmo extravagante, o que é indício de orgulho e boa vontade para com a glória. Os Descobrimentos não foram coisa de desbarretados, temos que concordar.
Pelo que sei, Madeira tanto pode ser nome de fidalgo, como designar um terreno florestal. A Ilha da Madeira foi assim chamada pela abundância de arvoredo que ela tinha; o Brasil teve esse nome pela quantidade de pau vermelho-brasa que, de tão dizimado, mal se encontra, senão em plantações de jardins botânicos . É de crer que S. João da Madeira fosse em tempos um lugar de grandes matas, quase sempre lugares a abater pelos primeiros colonos pastores de rebanhos. Se observarmos bem as figuras que se abeiram da plateia, no teatro onde passa a história de S. João da Madeira, elas são fáceis de reconhecer. São primeiro os lavradores de chapéu de lã de abas derrubadas para se defenderem do sol e o caçador com chapéu de abas levantadas para não impedir a visão. Quer dizer que o chapéu comanda a experiência.
Em S. João da Madeira o chapéu foi um ofício. Qualquer pessoa daqui sabe o que eram os "unhas negras", operários que preparavam o feltro para chapéus. Fora daqui não se sabe o que isso significa. Traduz a deformação profissional, a marca da habitualidade. Toda a habitualidade tem dois gumes: os direitos que inferem da experiência, mas também a inércia quanto à originalidade na produção. Ora é isto que S. João da Madeira provou que receia. As suas indústrias multiplicaram-se, e hoje trata-se duma zona de trabalho de variadas caneluras, como se diz dos sulcos ou estrias das colunas, na arquitectura. O calçado e a maquinaria representam para S. João da Madeira uma fonte de rendimento e, ao mesmo tempo, uma maneira de equilibrar o carácter do povo que trabalha. Não se automatiza porque respira conhecimentos diversos na área em que vive e em que progride.
Todo o progresso deve uma parte da sua história à imaginação. Um homem, ou uma geração, podem estilizar um módulo que aprenderam a fabricar; mas, para isso, não podem articular a obra que fazem a partir unicamente dum plano de acção e dos materiais a empregar ou das ferramentas a usar. É preciso que o meio da sua inspiração tenha o que se chama movimento de esperança; que em tudo veja uma animação de diferentes obras que renovam a sua capacidade de criação. É pelo espírito comum, em diferentes mesteres repartido, que se chega a uma realidade nova.
A profissão é a armadura dum povo. Ela tem que ser usada com aptidão e inteligência, tem que alcançar épocas de evolução sem parecer que faz o esforço de se adaptar. A adaptação é um período de miséria para o sentimento profissional do operário; ele sabe que a adaptação se faz através duma lei orgânica com a terra e as suas necessidades. A adaptação é o sinal de crescimento das nações quando representa um laço com o jogo primordial da vida, o desejo de progredir e de ser feliz.
Vivemos neste momento uma época decisiva de adaptação. As propostas que nos são feitas das grandes combinações para produção e gestão dos meios de produção, emanadas da C. E. E., significam uma era de mudança. Os povos que não mudam são povos condenados ao envelhecimento e ao desgaste. Dantes, a mudança obedecia ao regime natural das gerações que se iam substituindo com rapidez; agora, a Natureza sofreu a participação dos geriatras e do planeamento familiar. A juventude é menos numerosa do que a velhice, e aos velhos mudar parece obra nostálgica e decepcionante. É preciso, portanto, que o velho tenha asas abertas aos ventos de mudança, para que as brigadas das novas gerações tenham mais! orça de apoio na sua convicção.
É constatado que S. João da Madeira teve homens muito ilustres. Que andaram em Coimbra e andaram no Paço Real. Como Cristovão Alão de Morais, que foi jurista e poeta e que jaz na Sé do Porto em honrosa tumba. Além deste protegido da casa da regente D. Luísa de Gusmão, houve outros a quem só a sorte protegeu. Os brasileiros, em suma, que tanto deram que falar à língua viperina de Camilo, mas cujo suor podia fazer mover mais açudes do que os do rio Ave; e que foram gente amante da terra e com merecidas prebendas na lapela da casaca.
Nunca o país saberá ao certo quanto deve aos brasileiros. Mais do que aos mouros, que os tesouros destes ficaram encantados nas pedras das eiras; enquanto que as casas apalaçadas dos brasileiros, os seus hospitais e Misericórdias, ainda se podem ver como velhas Sés do corpo maltratado dos portugueses. São testemunho duma glória medida pela luz do postigo donde em crianças viam a estrela da guia. Sem brasileiros, o panorama das nossas terras do Norte era mais limitado aos suevos e aos celtas. A par da anta e da orada, ergue-se a casa do brasileiro, como um pão decorado de confeitos e de uvas passas. Ela representa a fartura, tem um jeito de cornucópia da abundância, deixando cair acepipes e flores por cima dos campos às vezes avaros de leite e de vinho. Os brasileiros foram assim como S. Roque do caminho de Compostela: deixavam perceber que a ode marítima tem no mesmo saco conchas de peregrino e de viajante.
Não falta quem faça a história de S. João da Madeira e quem registe todo o seu progresso, as suas mudanças, as suas provas de vitalidade e de coragem. O país é um suspiro que a coragem suspende nos lábios. As cidades são essas bocas suspirosas que o trabalho trava. Tantas cidades, tantos movimentos de esperança e desgaste de horas que não foram sempre felizes. Mas a felicidade, se é pequeno desejo de todos os dias, não é o maior afã dos portugueses, que na angústia muitas vezes perseveram mais, para vencer com honra melhor.
S. João da Madeira é grande, sim. Sem estridência, que não servem os discursos para contar a grandeza de pessoas e lugares assim. Não tem Capelas Imperfeitas à beira da estrada; nem circo romano nos arredores; nem catedral na praça e castelo na colina. Mas tem memória de homens e de factos que lhe asseguram a importância, o lustre e a continuação.
Para uma estrangeira como eu nesta cidade, é demais escrever como se fosse aqui nascida. Mas as pátrias têm expatriados nos lugares delas que não conhecemos. E, então, temos saudades deles, como se tem do país inteiro quando andamos por fora. Inventamos o sabor deles como dum manjar que nos lembra e nunca provámos.
Não vou falar muito mais, ainda que o assunto o aconselhe. O assunto são cumprimentos a tão digna gente que me quis ouvir. O assunto é a terra que me recebe e a quem deixo prosa e sentimento, como plumas dum chapéu de trovador. Não pensem que isto são meras palavras, de quem tem por ofício usar de palavras. Eu nunca digo coisas bonitas sem ter como fonte de conversação as afinidades com tudo o que me convida, tanto pessoas como paisagens e costumes. Portanto, creiam que, se ao entrar aqui não era daqui natural, ao sair levo uma certidão de S. Joanina da mais pura origem. Deixo uma saudação ao movimento cultural que a cidade promove. Ao ter sido membro do júri dum concurso literário, integrei-me na esperança de que a cidade se edifica.
As cidades são lugares de esperança que é como o fumo das chaminés: uma vez branco, em espiral no céu, outra vez negro e enovelado. As pessoas fazem as cidades e criam indústrias nelas porque isso produz riqueza; mas, mais do que riqueza, produz pretextos para relacionar os homens e firmar as suas alianças. É importante fomentar o trabalho dos cidadãos, porque na área do trabalho crescem as aspirações maiores e aperfeiçoa-se a personalidade, Não é grande honra o trabalho se ele não é seguido por pensamentos que lhe descobrem outra função que não é só a de ganha-pão. Diz um personagem do livro "Unhas Negras" de João da Silva Correia: "Também às vezes os operários lêem e procuram compreender os poetas". É que os operários são homens e os homens são poetas. Enquanto se obrigam à dura arte que muitas vezes lhes tira a saúde para lhes dar casa e agasalho, eles sonham com outra brandura do destino que seja conquista das suas vidas. Vencer o destino é a mais alta ambição do poeta. E todos os homens, que começam por reivindicar salário e horários mais humanos; e técnicas mais favoráveis; e condições mais nobres para a sua profissão - todos os homens, digo querem vencer o destino. Porque um patrão é pouco como barreira,· um governo não é nada como gestor de vidas. O destino é O que se pretende vergar à justa vontade do que pensa e do que trabalha. Fazem-se as cidades, não para se mirarem nos seus rios, com torres e castelos; mas para servirem de bastião contra o destino cruel.
Assim é S. João da Madeira: um parapeito sobre a eternidade, donde os homens contemplam o tempo doutros homens que virão. Entretanto cresce a cidade. E o amor da terra é a semente dos seus cálculos e das suas combinações, e das suas proezas. O operário e o poeta fazem a cidade. Eles são um só e conspiram contra o costume. O costume, como um poeta enorme já o disse "o costume, esse monstro que devora todo o sentimento". É preciso que a cidade cresça na sua inovação. O mundo é a cidade ao sabor da salvação que lhe sonhamos.
Acabo aqui. Deus abençoe esta terra e a sua gente.


S. João da Madeira, 1987-05-16.



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