Na passada sexta-feira, pelas 21h30 decorreu a primeira sessão do Ciclo Temático "O Fundo Local e os seus autores", que teve como convidado o escritor Manuel Córrego, havendo lugar a uma análise literária e biográfica apresentada pela Dra. Cristina Marques e ainda à Leitura encenada de alguns excertos da peça "A Rainha e o Cardeal".
Nesta sessão a coordenadora da Biblioteca deu uma pequena explicação de como se pode aceder às obras e aos seus conteúdos através da internet, no blogue da Biblioteca ou do site http://www.bibliotecadigital.cm-sjm.pt.
O antigo Grupo de Teatro NAT - Núcleo Amador de Teatro e o Grupo Cultural TOJ animaram a sessão com interpretação de alguns textos do autor sobre diversos períodos históricos abordando assuntos e preocupações que se mantêm nos problemas da actualidade nacional.
Com
o objetivo de divulgar o projeto de Digitalização e Disponibilização Pública do
Fundo Local, nomeadamente, o acesso digital às obras e aos seus autores, de
2 em 2 ou 3 em 3 meses a Biblioteca
convidará um autor cuja obra faz parte do espólio que constitui o Fundo Local.
Desta forma, ao mesmo tempo que
homenageia os seus autores, a Biblioteca Municipal
pretende preservar a História e o Património documental
de S. João da Madeira e torná-lo visível e acessível a toda a comunidade,
valorizando assim uma importante parte da história da cidade, por intermédio
daqueles que foram os documentos produzidos ao longo do tempo.
Leia o texto apresentado pela Dra. Cristina Marques a seguir:
A Manuel Córrego…
Acho que a S. João da Madeira faltava
esta forma de recuperar e dignificar os seus escritores e estratégias de
divulgação da ação dos que construiram o
que somos. Particular agrado me causou o facto de a 1ª figura ser o Dr. Manuel Pereira da Costa. Deve ser
dos poucos nomes da nossa terra que é pronunciado em “sequência regular”, como
um todo dignificante e individualizador: Manuel Pereira da Costa.
-
Manuel Pereira da Costa?
- Ah é o diretor d’ O Regional! - diz, em
uníssono, S.João da Madeira.
De facto, o desempenho desta função e o
que implementou neste jornal permitiram que se pintasse um retrato seu com
moldura sanjoanense, ainda que não tenha nascido cá. O Regional foi Dr. Manuel Pereira da Costa , mas Manuel Pereira da
Costa é muito mais que o jornalista, o diretor
e o cronista. É difícil sintetizar , em
poucas palavras, o tanto que é o Homem e
o Escritor, mas encontro nos versos de
Luís de Camões, poeta tão seu querido, as expressões ideais para o caracterizar:
“[…] braço às armas feito,
[…] mente às Musas
dada” (X,155)
As causas da democracia e da liberdade
revelaram-no como Homem de ação, como lutador e como agente de mudança, nestas terras e em momentos
de específico valor histórico: campanha de Humberto Delgado, comissões de apoio
aos presos políticos, eleições
legislativas de 1969, eleição de Benjamim Valente, ações de oposição ao regime
salazarista . E não resisto a referir nomes como Magalhães dos Santos ou Strech
Monteiro, entre outros, que ficarão para sempre, tal como Manuel Pereira da
Costa, ligados à história de S.J.M.
As
marcas indeléveis que deixou como homem
de ideias e de ação confirmam, portanto, o “braço às armas feito ”.
“ Uma mente às musas dada” tem provas
na vasta, muito vasta obra de Manuel Córrego, pseudónimo de Manuel Pereira da
Costa. E se vários prémios recebeu, de que destaco os Prémios Garrett, Teatro
Inatel, Prémio da Escola Superior Artística do Porto, Prémio Ler/Círculo de
Leitores, cumpre-me destacar a vertente dramatúrgica concretizada em
aproximadamente uma vintena de obras. A
mestria que revela na escrita de teatro garantiu-lhe a série de estudos feita
sobre a sua obra, nomeadamente pela Universidade
de S. Paulo em cadeiras dedicadas ao teatro histórico português. O enfoque dado
ao trabalho deste autor, no âmbito desta faculdade e no âmbito de teses
realizadas, destaca um aspeto marcante da dramaturgia de M Córrego: a vertente
histórica. O próprio autor
reconhece a importância da sequência dos
aconteciemntos históricos passados para explicar ou gerir a atualidade. Assim,
na sua obra, a história dialoga com a ficção e M. Córrego reconhece-se albergado pelas palavras de Eça, quando
na Relíquia diz “ Sobre a nudez forte da verdade - o manto diáfano da fantasia”.
A História é, em M Córrego, um pretexto
e um pré-texto para a ficção tal com esta o é para o desvendar da História.
Por vontade do autor, destacou-se,
aqui, hoje, uma parte da Trilogia dos
Descobrimentos, obra dedicada às figuras históricas de D. João II, D.
Manuel e D. Sebastião, agentes importantes da nossa história.
O romance histórico e o teatro
histórico (algumas peças de MC são
textos de cariz brechtiano, cujo objetivo é formar a consciência e a opinião
política, fazendo articular várias
linguagens artísticas: música, imagens…) nunca poderão ser lidos com isenção da
carga ficcional ( afinal o texto literário é uma recriação/re-elaboração pela
linguagem - que é um código – de algo
acontecido ou não, vivenciado ou não ( recuperando a teoria do fingimento,
explicada em “Autopsicografia” de F.Pessoa)). Se excetuarmos esta dimensão ficcional
garantida pelo código linguístico, o texto histórico de MC prolonga a ficção,
por opção deliberada do autor, ao escolher a figura ou a época e ao apresentar a perspetiva de um eu que faz uma
leitura da história. Esta riqueza ficcional do texto literário histórico
aparece intensificada neste autor porque,
de forma exímia, coloca em interação figuras da realidade acontecida e figuras
da ficção numa horizontalidade que promove uma outra dimensão de conhecimento,
recriando acontecimentos ou dando-lhes continuidade à luz de outra mentalidade
e de outros contextos socioeconomicos e culturais. Refiro, a título de exemplo,
os escritores Eça de Queirós e Camilo
Castelo Branco construídos como
personagens de uma diegese romanesca. Este
é um artifício artístico-literário da pós-modernidade que também encontramos em
Saramago no Ano da Morte de Ricardo Reis , em valter hugo mãe com o “esteves
sem metáfísica” que aparece na Máquina de fazer espanhóis ou, mais
recentemente ainda, em Nuno Camarneiro com as figuras de Pessoa e Jorge Luís Borges
em No meu peito não cabem pássaros.
Ouvimos, hoje, aqui, uma leitura
dramatizada feita pelo TOJ, a quem agradeço a prestação, de um excerto de “A
Rainha e o Cardeal” que é a terceira
peça da Trilogia dos Descobrimentos.
A escolha deste texto para partilhar convosco foi da iniciativa de próprio
autor, mas se eu tivesse que escolher um momento da obra de MC seria exatamente
esta peça por se tratar, primeiro, de um texto dramático ( portanto, modo
literário muito ilustrativo da obra do autor) e, segundo, pela incrível atualidade da mensagem. É o
próprio dramaturgo que o atesta:
“A verdade é que
muitos atos do rei fervente se repetem hoje em dia. A colossal cegueira para o
vendaval que se aproximava, a teima em gastar muito mais do que se produz, a
maneira de encarar o naufrágio, sem saber se a cura não seria pior do que a
doença, a hipoteca do futuro em favor do egoísmo feroz do presente.” (CÓRREGO,
Manuel)
“Hoje estamos a
braços com uma crise de tal ordem que foi preciso a União Europeia dar ordens
precisas e diretas para medidas de saneamento das contas públicas, coisa que
todos sabiam, mas que ninguém pôs cobro, nada mais que por interesses políticos
imediatos.” (CÓRREGO, Manuel)
A escrita de MC revela um excelente
domínio da língua portuguesa (tão maltratada ultimamente… por acordos em
desacordo!), manifesta uma excelente limpidez na estruturação das frases,
sintomática de uma clara estruturação de
raciocínio e de uma conceção metódica da arquitetuta do romance e da estrutura
interna do texto dramático. As personagens recortam-se sempre em consistente
densidade psicológica, ganhando contornos de verosimilhança junto do leitor. Os
diálogos do texto dramático são
incisivos, pungentes, conduzindo em ritmo acelerado ao climax da ação. Mestre
na arte do teatro, MC não é desconhecedor da necessidade de aligeirar ou cortar
o ambiente dramático e tenso das peripécias, sabendo introduzir episódios mais leves,
humorísticos, com ritmo diferente. A sua
cultura literária vasta dá-lhe o saber para incluir, por exemplo, um coro, na
função do coro das tragédias clássicas que agoura ou prediz o desenlace da
diegese, ambas as situações aqui presenciadas
hoje.
Gostaria de terminar, dizendo que Manuel
Pereira da Costa, como cidadão ativo, empenhado e modelar, também o é como
escritor: a sua obra é a voz da
História consubstanciada na sua forma de ser democracia e na sua arte
de escrever para todos em nome da nossa portugalidade.
Cristina Marques
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