Ontem,
dia 30 de maio, pelas 21h00, decorreu na biblioteca municipal, a sessão do
Clube de Leitura de Maio para a abordagem, análise e discussão da obra "O
pianista de hotel" de Rodrigo Guedes de Carvalho.
O
último romance do autor, considerado pela crítica como a sua melhor produção
literária, é construído em camadas, com a história de duas personagens
principais, que vai sendo contada, alternadamente e dada a conhecer em doses
pequenas.
A
obra, formalmente, está bem estruturada, bem pensada, muito rigorosa, com
linguagem simples, corrente, familiar e por vezes até bastante vulgar, na linha
da que é usada pelos novos escritores de romances que têm emergido no panorama
literário nacional. Notam-se também algumas semelhanças com o estilo de António
Lobo Antunes e José Saramago.
É
um romance denso, "opressivo e de uma enorme força", no qual as
personagens que vão surgindo são apresentadas de forma muito semelhante a um
argumento para cinema e que prende o leitor até ao final.
Lembra-nos
um pouco o filme dos finais dos anos 90, "O sexto sentido" com uma
personagem que dizia "I see dead people", porque no final, percebemos
que algumas personagens nunca existiram ou já estão mortas.
Curiosamente
há uma referência às mochilas Montecampo, que são fabricadas em S. João da
Madeira há mais de 40 anos.
A
obra foca-se na vida quotidiana, onde paira o amor, a perda, a violência
doméstica e sexual, a homossexualidade incompreendida, a morte, a solidão, os
demónios que habitam em cada um de nós, encontros e muitos desencontros,
mergulhando-nos nas profundezas da alma humana, em permanentes reflexões sobre
tudo. A melancolia está presente do princípio ao fim.
O
filósofo espanhol da primeira metade do século passado, Ortega y Gasset, é
referido na sua célebre frase que sintetiza sua maneira de compreender e
interpretar o mundo. “eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo eu”. Com um pouco de reflexão entendemos
que ele nos lembra que não somos seres isolados, independentes e
autossuficientes. Se eu 'sou eu e minha circunstância', isso quer dizer que
somos a soma de nós mesmos, das nossas singularidades, mais as condições -
favoráveis ou adversas - do meio e das circunstâncias nas quais estamos
mergulhados. Mas
no romance muitas das personagens estão completamente sós na vida, porque
praticamente não têm suporte familiar, ou sentem-se sós no meio da multidão.
A
música é um fio condutor nesta obra. As referências musicais são uma constante
e a vontade do enfermeiro Luís Gustavo de enveredar pelo caminho da música,
vivendo até um pouco frustrado e obcecado com sua evolução nesse sentido
assemelha-se ao que se passa com o próprio autor que já fez um pouco de tudo,
menos aquilo que reprime há muito tempo, que é dar aso à sua veia musical.
Há
constantes reflexões sobre a “perseguição” a uma das personagens mais
interessantes, Pedro Gouveia, quando afirma que "a mediocridade é o mais
perigoso dos caçadores furtivos, e não descansará, nunca, enquanto não eliminar
o animal raro que lhe faz sombra, que não a deixa dormir, a mesquinhez baixinha
e insegura é eternamente agitada porque o animal raro, simplesmente existe.
Todos os outros pecados mortais, combinados, são uma brincadeira comparados com
a inveja".
No
final, quando tudo se poderia conjugar para a concretização de alguns encontros
entre as duas personagens principais e que as poderiam fazer mitigar as suas
chagas da alma, percebemos que apenas se cruzam e tudo acaba em desencontro. E,
muitas vezes é assim, sem final feliz e sem o pianista de hotel...
Fiquemos
pois com o excelente texto final “Depois do fim”, no qual Rodrigo Guedes de Carvalho revela
muito sobre si próprio e da sua forma de sobreviver à sensação de perda que
todos vamos tendo longo da vida.
“Os
meus mortos visitam-me regularmente.
Demorei
a dar por eles. Não tenho religião que me valha ou guie, e acreditava que os
mortos morrem no momento em que morrem, espere-os uma nuvem, uma labareda, ou
só a terra onde se deitam a dormir para nunca mais.
Demorei
a exigir que não podia ser só isto. Sou ao contrário: era mais conformado em
jovem.
Por
vezes, se estou num jantar com muita gente e muito ruído, e fico cansado, desce
um silêncio que só eu ouço e uma neblina desfoca as pessoas que falam e riem, e
vejo-o, sentado na outra ponta da mesa. Por vezes ergue-me o copo, e eu
retribuo. Olhamos um pelo outro.
Também
a vejo a ela, sobretudo se fecho os olhos e inspiro, e estou outra vez pequeno
na cozinha grande, e ela deixa-me rapar da panela o açúcar amarelo que ficou
agarrado depois de fazer os biscoitos.
E
também um amigo meu, que nasceu no ano em que nasci, e que partiu cedo sem me
dizer adeus, acenou-me um dia destes, estava eu na praia, pé ante pé hesitante,
a entrar na água fria, e ele já nas ondas muito brancas lá à frente, mergulhava
feliz, e acenou-me da espuma, nunca envelheceu.
O
corpo? O corpo chega aos outros sempre antes de nós, é portanto natural que
parta antes de nós.
Por
isso o meu velho está aqui o comigo. Enquanto escrevo, verifica a sua coleção
de selos, pega num, com a pinça, espreita com a lupa pequenina, cataloga, está
tranquilo. Claro que não posso dizer que vejo claramente. Está numa penumbra e
todo ele é linhas difusas.
Eles
têm a idade que quiserem.
Nunca
digo a ninguém que estão aqui comigo. Mas estão. Acredito. Eu, homem sem
nenhuma outra fé, acredito.
Devo-lhes
isso”.
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