sábado, 29 de fevereiro de 2020

CLUBE DE LEITURA - FEVEREIRO

Na passada 5ª feira, dia 27, pelas 21h00, decorreu a sessão do Clube de Leitura de fevereiro, para a análise e discussão da obra "Torto arado" do jovem escritor baiano Itamar Vieira Júnior, que foi prémio Leya em 2018.

Este livro já foi adaptado para cinema com o título "Bacurau", nome de pássaro noturno, pelo cineasta Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, recebendo o prémio do júri do Festival de Cannes. Filme e livro foram feitos por nordestinos que fazem questão de denunciar a manutenção de um regime de escravatura, numa sociedade rural, com características ainda feudais que se prolonga pelo século XXI e a consequente resistência contra o poder, com a violência chocante que nos chega através das notícias.

Na opinião de Paulo Werneck, que foi membro do júri do prémio, a obra remete-nos para o ambiente de "Lavoura arcaica" de Raduan Nassar e trata-se de um romance político. Itamar reconhece que "há uma dimensão política como em tudo que diz respeito à experiência humana" e “O que nos move é aquilo que nos incomoda. Para mim é quase indissociável fazer arte, no meu caso literatura, sem ser provocado por alguma coisa. Esse é o sentido da arte, aquilo que nos toca, a experiência humana. E vejo a política como uma dimensão da vida humana. O facto de hoje se compartimentar o que é política e o que não é política abre um vazio e a possibilidade de ele ser preenchido, por exemplo pela extrema direita. Não vejo a vida dissociada da política.”


Em Torto Arado conta-se, a três vozes, a história de uma família que vive num quilombo (comunidades auto-organizadas de escravos libertados) no sertão da Bahia, uma região semi-árida. O leitor acompanha as vidas de Bibiana e de Belonísia, filhas de trabalhadores rurais, e com elas também a evolução da sua família – o pai era um curandeiro e líder espiritual – e dos movimentos de insubordinação pela posse da terra. Ao longo do romance, vai-se esboçando um quadro de injustiça e de imposição de servidão aos trabalhadores rurais. O modo de vida vai evoluindo: é construída uma escola depois de muito esforço, há um hospital a que se tem acesso apenas em casos gravíssimos, como o que ocorre no início da narrativa. Mas aquilo que vai sobressaindo é a imobilidade das estruturas sociais e fundiárias, a servidão que é disfarçada com um sentimento de gratidão dos explorados por poderem trabalhar naquela propriedade e serem pagos quase sempre em géneros, a desconfiança com que são olhados aqueles que tentam mudar as coisas.


Parece, mas não é, uma coisa de ontem: “Os grandes proprietários continuam ditando como é que se vive nesses lugares, continuam explorando os trabalhadores, continuam matando opositores”, afirma Itamar Vieira Junior. “O que é uma coisa impensável no século XXI. A trama deste romance termina nos dias de hoje, e eu gostaria de dizer: isto não existe mais no Brasil, está datado. Mas não, isto é a realidade. No ano de 2017, 70 trabalhadores rurais que de alguma forma lideravam [grupos] pedindo mudanças foram assassinados. E esses actos continuam sem ser esclarecidos. É claro que existe uma vontade muito forte de manter este estado de imobilidade. Existem também inúmeros conflitos de fazendeiros, madeireiros, com as populações indígenas que vivem em reservas,  que vêem a sua terra invadida, que são expulsas por força do capital, por força do agro-negócio, da expansão agrícola. Esses problemas não são enfrentados efectivamente pelo Estado brasileiro.” 

Em "Torto arado"  viajamos até ao Brasil, a terras do interior da Bahia de S. Salvador, permitindo-nos aprofundar conhecimentos sobre a história e cultura do Brasil e do povo brasileiro, sobretudo os afro-brasileiros. Desde a captura e tráfico de escravos em África até serem leiloados em mercados de Olinda, Bahia, etc. Tudo isto porque os índios não conseguiam resistir ao trabalho escravo e tinham que ser substituídos por outra força de trabalho.

Percebemos também aquela miscelânea de crenças religiosas e todo o misticismo que hoje ainda prevalece na cultura brasileira que se torna por vezes absurda mas ao mesmo tempo fascinante.

Tanto conhecimento expresso.. certamente porque o autor é doutorado em estudos étnicos e africanos.

Belo livro! Boa escolha! 










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